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piauí: 10 anos na cozinha

Por Bárbara Baião, Julia Cople e Marina Ferreira

 Pouco antes das seis da tarde, Raquel Zangrandi estabelecia o último contato com a gráfica de São Paulo antes de ir para casa. Naquelas vésperas de noite, a parceria comercial de impressão e distribuição com a Editora Abril rendia o primeiro “Estado de produção, ok. Vamos rodar”. Era finzinho de setembro de 2006, uma sexta-feira – o cronograma de lançamento da revista piauí previa uma primeira edição nas bancas naquela próxima segunda-feira, começo de outubro. Na capa, o resultado de uma apuração de seis meses. Durante meio ano, a publicação procurou entender a história de sucesso da companhia Gol enquanto as concorrentes brasileiras Transbrasil, Vasp e Varig haviam falido e parado de operar – uma trajetória que combinava preços populares com o aumento do poder de consumo da chamada classe C. No título, “É gol!”. Já em casa, Raquel recebia do noticiário daquele dia 26 a informação de que um avião da companhia havia caído em Mato Grosso. A conclusão de que os tripulantes haviam sido vítimas da imprudência de um jato Legacy, que nada sofreu, ainda demoraria dias. Podia ser falha técnica, podia ser imperícia humana. Por respeito aos parentes dos 154 mortos, era consenso, a reportagem deve ser substituída. 

“Começou bonito”, relembra a secretária de redação, em tom tranquilo de quem sabe o final feliz da reviravolta. A ordem era que todos trabalhassem na edição de uma nova história no sábado, às oito da manhã. Na gaveta, a saída possível: um trecho de um livro da Companhia das Letras de um jornalista do New York Times relatava a primeira entrevista de Fidel Castro em Sierra Maestra, em 1959, antes da marcha revolucionária a Havana. Os direitos de publicação estavam comprados, a tradução da editora estava pronta. Faltava foto – do outro lado da linha, a agência de imagens também estava de plantão. Até meio-dia, quando estourava o prazo da gráfica para que não houvesse atraso na chegada às bancas, um trabalho de revisão e checagem que duraria dias em situação ordinária. Foi preciso encaixar uma reportagem de mesmo tamanho para não desconfigurar a encadernação e tirar todas as menções à da Gol no índice, na página de colaboradores e na capa. “Ainda não estava impressa, foi quase. E eu achei bom, porque eu vinha da produção da Videofilmes, em que tudo era mais animado. Na revista, eu achava tudo lento, um mês para fechar. Sempre amei gincana. Na adolescência, eu era a rainha da gincana”, conta a secretária da redação. 

Antes de advogar para si todo um andar do número 270 da Rua do Russel, na Glória, a gestação da revista piauí ocupava, no mesmo prédio, salas da Videofilmes, produtora de cinema de Walter Salles e João Moreira Salles – o mecenas do novo projeto. Em maio de 2005, depois de uma primeira troca de e-mails, haveria uma primeira reunião oficial, da qual Raquel fora encarregada de escrever a ata. Seria em Cambridge, nos Estados Unidos, onde Dorrit Harazim acompanhava o marido, Elio Gaspari, que havia seis meses pesquisava documentos dos governos brasileiro e americano na Universidade de Harvard para fechar a coleção de livros sobre a ditadura. Mario Sergio Conti, mais tarde escolhido como diretor de redação, viajou de Paris, onde era correspondente, até a casa dela. Há tempos já manifestava a vontade de voltar ao Brasil e reavivar um projeto na Editora Abril parecido com o que viria a se tornar a piauí. Compunha ainda o corpo dirigente o jornalista Marcos Sá Corrêa. “Foi uma espécie de brainstorm, uma troca de ideias sobre a revista, como as possíveis pautas de um número zero. Eles já sabiam o que não queriam”, conta a secretária, que passou a participar de todos os encontros para documentar o passo a passo. 

Da janela do prédio, de horizonte na Marina da Glória, um só coqueiro reinava na vegetação da Praça Luís de Camões – como se adivinhasse que perto dele nascia uma revista que se pretendia diferente no mercado jornalístico. Pelo menos naquele momento, em que não havia mais Senhor ou Realidade para ensejar uma competição. “Criamos a revista que queríamos ler”, resume João Moreira Salles. Desde o início, a ideia era uma publicação mensal de reportagens, de ficção, de quadrinhos, de ensaios, de cartoons, de trechos de livros. Sem colunas, artigos de opinião ou editorias fixas. Um “misturadão” de referências em papel impresso. Sim, tradicional, ele fazia questão. “Se você quer contar a história dos Correios, esgote a história de uma só carta”, diria o entusiasta documentarista a Renato Terra, que se juntaria à redação quatro anos mais tarde. Em 2005, enquanto fechavam o conceito, estourava o escândalo do mensalão. Um dos números zero da revista – um deles, só online – tratava o esquema de compra de apoio parlamentar com um portfólio de Orlando Brito, o mais experiente fotógrafo em Brasília. Fotos deixadas de lado, até então inéditas, aproveitadas na edição – mais ou menos como, dez anos depois, ele voltaria à publicação para remontar as tensões da presidente Dilma Rousseff diante do processo de impeachment. 

Se o conceito de jornalismo estava bem consolidado, o corpo dirigente protelava a escolha do nome da marca. Da lista de opções, todos caíam a certo ponto. piauí resistia. “Cadê a lista, Raquel?”, pediam um ano e meio depois na urgência de bater o martelo. “Mas piauí? Por que piauí?”, ela relembra, em tom jocoso, a estranheza que o candidato causava à mesa. Moreira Salles defendia: um estado brasileiro que pouca gente conhece, que havia sido esquecido em um livro de geografia tempo antes. Recorria até a Gilberto Freyre, segundo quem os países nórdicos tinham nomes de muitas consoantes, geladas e pontudas –  e o Brasil, como os demais do hemisfério sul, de herança africana e latina, esbanjava vogais, estas quentinhas e aconchegantes. “Tem a ver com despretensão, não é palavra moderninha. É coisa do Brasil, toda em minúsculo mesmo”, sintetiza Raquel.  

“Tá vendo só do que escapamos?”, ela cativa, por e-mail, antes de revelar os nomes que disputaram o cabeçalho até a reunião definitiva. “Você poderia estar entrevistando a revista Rocambole. Ou pior, O Polvo”. Na ata da secretária, uma lista de ideias que sobreviveram – por benevolência ou protelação. Atlântida, Província, Trópicos. Desvão, Vira-Lata, Zig-Zag. Equador ou Sul. Buzina ou Coruja. Ou Esquina. Quem sabe Lontra. Até Esquina. 

A escolha do pinguim, no mesmo sentido, “foi aleatória”. Convidado por Mario Sergio Conti para ilustrar o que seria o primeiro número, o cartunista Angeli levou ao grupo de editores cinco desenhos sem muito conceito. O escolhido trazia um pinguim em cima de uma geladeira – enfeite ícone da classe média dos anos 1970. (O do cartunista portava boina guevarista.) Acabou pop. “Daí, todo ano, na edição de aniversário, quem desenha a capa é Angeli, e sempre dá um jeito de encaixar um pinguim”. 

O jornalismo de piauí queria desconfiar, olhar com ceticismo o que apurava. Ainda assim, queria não se levar tão a sério. Parte disso se infiltrou nos textos, outra parte descambou para o espaço reservado à sátira. No caso do blog The piauí Herald, a gênese dá o tom. Moreira Salles quis ressignificar o hard news depois de assistir uma campanha de bolsas da grife francesa Louis Vuitton com o último líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev. A primeira edição trazia dicas de presente de Natal, como uma camisa de força para o então prefeito do Rio, Cesar Maia. Já no Diário da Dilma, que sai pela última vez neste junho, a personalidade de uma adolescente romântica contrasta com a postura sisuda da presidente petista. “Para (o presidente interino) Michel Temer, uma seção de sátira específica teria que ser algo completamente diferente de um diário para não parecer que pegamos carona no sucesso. É bem provável que não haja nada mensal sobre ele”, explica Terra. 

Na redação da Glória, onde piauí editou os primeiros seis anos, os “cadeiras verdes” conviviam com os “cadeiras pretas”. As verdes, de encosto baixo, como de escritório, eram lugar dos repórteres. Nas pretas, de costas altas, sentava a chefia. Perto deles, na cozinha do andar, um fogão industrial encostado intrigava Maria Cecília Marra, diretora de arte da revista desde a edição 13. “Esse fogão aqui e você comendo comida ruim na rua”, ela dizia aos amigos. Um dia, passou um macarrão na chapa com legumes e serviu alguns poucos colegas. Sobrou almoço. Com o costume, mais pessoas frequentavam o entorno do fogão. Virou instituição. Como mora em São Paulo, Cecília vai ao Rio uma vez por mês para a semana de fechamento. Já vem programada: um prato diferente para cada um dos sete dias e um assado, um bolo, um rocambole ao fim da tarde. No fim de maio, de clima frio, fez sopas. É Cecília quem faz as compras e organiza o racha do supermercado quando a revista enfim está pronta. A reunião em volta da mesa rendeu material e fez render trabalho. Tudo o que cozinhava, um hábito que deve retomar nos próximos meses, fotografava e postava no blog “Questões de forno e fogão”. Já os novos repórteres, para “quebrar o gelo”, são logo convidados a provar os pratos e ajudar na lavagem da louça. Desde então, Renato Terra é editor de pão-de-queijo e Raquel, de sobremesa. 

Mas, na Glória, os repórteres ficavam longe das fontes. Em 2013, era preciso mudar, entendeu a direção. O local escolhido, no 151 da Aníbal de Mendonça, em Ipanema, abrigou também a Videofilmes. Na recepção, uma orquídea roxa quebrava os tons claros da decoração. Segundo andar: ao abrir das portas do elevador, um composé de capas da revista à direita, em ordem numérica. Desta vez, todas as cadeiras têm encosto alto – pretas, as das mesas de trabalho; brancas, as da sala de reunião, de onde, pelo blindex de isolamento, é possível observar toda a redação. “É pequena. Tem um quê de cuidar da lojinha”, resume Terra sobre o espaço, silencioso depois das madrugadas de fechamento da semana anterior. No terraço, um espaço de convivência reformado para a convivência e a comilança, funcionárias de serviços gerais se deliciavam com o que restara dos pratos de Cecília. 

“Chegou a revista”, interrompe Moreira Salles, ao se virar, sem mexer a cadeira, para os exemplares que a secretária Mel embalava em envelopes. O diretor de redação, Fernando Barros e Silva, também de costas para a entrada, só parou de responder à pergunta quando viu à sua frente a edição de junho. “Ah, imprimiram bem, João”, disse, ao analisar a capa satírica do álbum Tropicália com as figuras do governo Temer, como quem comemorava mais um número sem reviravoltas. “A gente fica ansioso para ver também, porque ela imprime em São Paulo. Eu sempre fico em pânico para saber se a capa não está de ponta cabeça”, ele exagerava minutos antes, enquanto aguardava a chegada dos pacotes. Na entrevista, em 2 de junho, era como se os papéis não estivessem bem definidos, e os entrevistados observassem os entrevistadores. O olhar aparentemente perdido – embora sempre interessado – de Moreira Salles parecia biografar remotamente quem o indagava, sem renunciar à cumplicidade e às brincadeiras com Fernando, um paulista à frente da piauí desde 2012. 

Um dos mais novos a integrar a redação, Tiago Coelho esteve ali de fato na berlinda. Em 2014, viu nas páginas da revista um anúncio de estágio. Seria preciso escrever uma Esquina de até seis mil toques. Como preparava com um amigo um documentário sobre a história do ajudante de pedreiro Amarildo Souza, morto e desaparecido na Favela da Rocinha por obra de policiais militares em 2013, escolheu a história do sumiço da mulher dele, Elizabeth, que a própria o havia contado em uma das gravações. De 125 inscritos, Fernando escolheu cinco para a entrevista final; um deles, o estudante da PUC. Tiago não gostava de sabatinas – não sabia, segundo ele, “vender o peixe”. Quando entrou na sala, se deparou com Fernando, Raquel e Rafael Cariello, editor da revista, hoje em Paris. Na primeira pergunta, sobre seus interesses, flechou “política, cinema e literatura”, a especialidade de cada um da trinca avaliadora. Mas Tiago havia enviado um texto com dois mil caracteres a mais que o permitido. Perguntaram porquê. “Eu imaginei que o último lugar que me podariam por escrever mais seria aqui na piauí”, cravou. Mais tarde, descobriu que estava dentro. Hoje, é contratado. 

Sobre a piauí, desde o começo, recaiu o rótulo de jornalismo literário. João Moreira Salles desconfia, advoga para o jornalismo uma prática que não depende dos louros da literatura. Considera-o pretensioso, como resposta a um complexo de inferioridade da classe para “se sentir no mesmo camarote VIP dos escritores”. Ele considera um erro qualificar a revista como a “New Yorker brasileira”, em menção à referência deste tipo jornalístico nos Estados Unidos. “Eles têm 80 anos, estão no centro do Império, falam a língua universal, reportagem assuntos que interessam o mundo todo, têm mais gente capaz de escrever a revista. Os nossos assuntos são periféricos e nossos recursos são mais escassos”, salienta o publisher. No início da revista, pairavam duas dúvidas existenciais: se havia mão de obra qualificada para escrever e público para ler, sem que houvesse modelo vivo em língua portuguesa para servir de inspiração. Da New Yorker, pelo menos, vingou a pecha de elitista creditada à piauí – que se vende no slogan “para quem tem um clique a mais”. Nesta visão, seria um veículo que avança nos temas sem mastigar conteúdo, estrutura frasal, vocabulário ou enfoque das histórias. Um jornalismo, em tese, que abdica do chamado grande público. Na descrição aos publicitários, a revista evidencia que “quanto mais a educação se universalizar no Brasil, mais leitores terá a piauí”. Sobre os consumidores, o “Mídia Kit” salienta que “são pessoas com capital intelectual, que ocupam posições de liderança ou estão a caminho de um dia liderar, seja nas redações, no poder ou nas universidades”. 

Em resposta, Fernando, Moreira Salles e Terra arriscam em crer que tal opinião pertence a quem não lê ou lê pouco a revista. “Tem um clichê que a revista é cabeçuda. Tem para todos os gostos e são escritas com clareza. Meu filho de 14 anos lê e entende tudo”, também discorda Raquel. “Você tem que ter fôlego, não é para ler de uma sentada só. É como um livro”. Na visão do jornalista cultural Arthur Dapieve, trata-se de uma revista de nicho, que parte do princípio que o público é bem informado, sem menospreza a inteligência dele. “O grande público não sabe ou não se interessa em ler. Se a piauí baixar a bola e explicar demais as coisas, deixa de ser piauí, deixa de ter o peso e a profundidade que tem”, ressalta o professor. “O leitor precisa ter a informação complementada com outro texto, porque piauí é a terceira leitura, em tese, depois dos diários e das semanais. É detalhado, mas nem sempre há um retrospecto. Parte dos que leem vão talvez correr atrás de algo que não entenderam”. 

O mesmo, há algum pouco tempo, vale para as capas da revista. Ainda que continuem sem compromisso com o conteúdo da edição que ilustram, as obras guardam agora um vínculo com os acontecimentos do mês. “A capa é hoje o nosso editorial”, explica Moreira Salles, em tom firme. Uma iniciativa sujeita à temporalidade da revista. O beijo entre Michel Temer e Eduardo Cunha, por exemplo, seria, de início, um beijo entre o presidente interino e Dilma Rousseff. Antes da ideia de trocar os personagens do álbum Tropicália – capa deste mês de junho, Moreira Salles e Fernando pensavam em reproduzir uma cena tradicional da família dos anos 1950. Marcela Temer, de avental, dava tchau com Michelzinho para o marido que partia ao trabalho de manhã cedo. “Aí veio a montagem dos ministérios, os grampos [de Sérgio Machado]... O que parecia bom até o dia 15 foi atropelado pelo noticiário político”, explica o documentarista, resignado. A piauí nunca foi alvo de processo judicial – apenas em ameaça, por parte de Eduardo Cunha, dois meses depois do beijo com o aliado. Sobre a capa do Temer nu, uma referência ao conto do rei vaidoso, receberam resposta apenas de Julia Duailibi, repórter da publicação em São Paulo. “Fernando, você está dificultando a minha vida”, diverte-se ao lembrar o diretor de redação. Mas a paródia não significa um apoio à presidente afastada, que provavelmente, se voltar, verá também “uma capa devastadora”. Moreira Salles reflete se incomodam pouco ou se são “pequenos demais para se importarem em processar”. Mal ou bem, ele não se poda. “Eu sou o kamikaze da redação, o menos prudente”.

 

 

 

Em geral, a ideia da capa parte da piauí para a artista russa Nadia Khuzina, radicada na Califórnia. Mas a acidez da publicação já rendeu a ela críticas também na seara dos movimentos sociais. O projeto original da edição de dezembro do ano passado estampava uma Mamãe Noel sexy com “Fora Cunha” escrito na barriga – ilustração que acabou dentro da revista, mas mesmo assim revoltou feministas. Em seu blog de charges políticas, Nadia comentou que mirava ali, além do presidente da Câmara, o feminismo. “Eu fui bem sucedida em ofender mulheres que pensam ter mente aberta e ser tolerantes, mas não como eu esperava. Eu subestimei a imbecilidade delas. (...) Uma dica para as jovens idealistas: não invistam no feminismo, é uma tendência temporária e burra”, reforça a desenhista em uma rede social de portfólios. A artista, que se define uma conservadora que acredita ferozmente na liberdade de expressão, diz que enxerga o mundo “em cores vívidas” – o certo e o errado, no entanto, para ela “são monocromáticos”. “Eu apenas me orgulho em deixar bem bravas pessoas de que nunca ouvi falar, nunca vou encontrar ou nunca mais vou falar sobre de novo, como Sepp Blatter e o extraditado Jose Maria Marin”, resume Nadia. 

“Eu poderia te enganar, mas é verdade”. Assim admite Moreira Salles sobre a garantia que dá à revista de ter as contas pagas ao fim do mês. É ele quem garante a publicação, uma estabilidade que os permite não desviar da rota editorial pensada há dez anos: uma mistura de faro político e apostas sem carimbo de pesquisas mercadológicas. “Se você acaba seduzido por isso, você entrega para o leitor a revista que ele supõe que quer ler. Eu quero entregar a revista que ele não sabe que quer ler”, conceitua o publisher. Sem editorias fixas, a revista abdica da obrigatoriedade de produzir ciência, esporte ou política todo mês. Ele ressalva que não se trata de uma postura militante de estar na contramão – apenas não via sentido em largar os documentários para competir com a Veja. Ao tomar a decisão de não mudar em nome do comercial, eles sabem, piauí exclui leitores que poderia ter. Ao resistir, por outro lado, ganha público de outros meios que acabaram. “Mas a revista não é um capricho”, firma Moreira Salles. Até janeiro, a publicação somava 24.733 assinantes – com a venda em banca, vende cerca de 35 mil exemplares ao mês. No ano passado, foi o único veículo de imprensa que manteve a ascensão dos fidelizados. Registra também a maior taxa de renovação entre as revistas geridas comercialmente pela Editora Abril. 

 

O orçamento é fechado. A redação, enxuta. Isso para dar vazão a um jornalismo custoso, que privilegia as viagens à conta de telefone e que paga o salário de um repórter por três meses em troca de uma reportagem. A apuração, decerto infinita, sempre passível de novas observações e fontes, um dia precisa terminar. Caso contrário, “vira processo de protelação”. “Chega uma hora que a Malu [Gaspar] tem que parar de conviver com o Delcídio. Mas quando é que a gente diz para a Consuelo parar e sentar para escrever? Eu gostaria de saber, especificamente para a Consuelo”, goza Moreira Salles. Em média, um texto do piauí leva 10 dias para ser escrito e mais 15 para ser editado. Na primeira leitura, o editor marca estruturas narrativas, lacunas de apuração e devolve para o repórter trabalhar em cima daquilo. E de novo. Depois de três versões, em geral, a reportagem chega à checagem, responsável por afinar os dados, as estatísticas e as fontes em caso de assuntos mais delicados. Nem sempre dispõem de tanto tempo. A semana de fechamento vara a madrugada. Na narrativa, buscam o poder de evocação – sentir o cheiro, ouvir o barulho, entender o personagem em como ele vê o mundo e como trata o garçom. Uma linha tênue entre o conteúdo aprofundado e o cacoete de escrita, ressalva Moreira Salles. 


O documentarista atenta para a prevalência de alguns “modos de fazer”, sedimentados em uma cultura institucional. Talvez, na forma de piauí: alguns leitores já percebem uma predileção pelo início de reportagens em cenas ou histórias metonímicas do personagem. O que era subversão da técnica consagrada do lead americano agora seria modelo. Na escrita, os editores identificaram o cacoete de descrever a cena em que um personagem rico bebia vinho. “Durante uma época aqui, todos os corruptos bebiam vinho, e a gente precisava dizer qual o vinho, como se isso dissesse alguma coisa. Político viajando em jatinho, então, se não abrisse uma garrafa...”, recorda Moreira Salles. No mesmo sentido, personagem bravo “tinha que dar soco na mesa”. Um dos vícios de narrativa mais agudos, que a piauí já reflete em voz alta na redação, é terminar textos com declarações. “Estou lembrando aqui... O texto da Malu sobre o Delcídio começa e fecha em aspas”, interrompe Fernando, em tom de humor. O cuidado, dizem, é não cair na calha do previsível ao pensar em mais histórias como o test drive de Paulo Maluf, em que o repórter pôde descrever o político paulistano em uma cena “patética, não indignada”. 

 

Mas piauí não se conformou no nicho – se não na década, pelo menos nos últimos dois anos. Em 2015, a publicação passou a produzir vídeos em pautas de apelo visual, como na história do fim da editora Cosac Naify, cujo dono, Charles, dormia em um quarto todo vermelho em homenagem ao filme “Gritos e Sussurros” de Ingmar Bergman. “Sempre que a gente tenta entrar em algo novo, é porque a gente acha que pode fazer diferente”, explica Terra, segundo quem a piauí ainda procura uma linguagem própria audiovisual, “sem o frenesi dos vídeos de internet ou limite de tempo”. Em 2016, a revista passou a se hospedar no site da Folha de S. Paulo em vez do Estado de S. Paulo, em busca de maior alcance e mais apelo comercial. Preparou também o lançamento de aplicativos da piauí, ainda não divulgados, e a elaboração do blog “questões de política” para tratar do dinâmico noticiário político brasileiro. “Os repórteres colaboram com a gente do site e a gente tenta valorizá-lo sem uma equipe específica para isso. Por enquanto, nós assobiamos e chupamos cana”, avalia o editor da web sobre as novas atribuições, que incluem uma postagem por semana para cada jornalista ligado ao tema. Sem necessidade de hard news, o blog político quer notícia em primeira mão. Não um perfil de 40 mil caracteres, mas uma apuração que levante novidades não opinativas. 

 

Para Moreira Salles, o investimento no site – por enquanto, ainda uma fonte de custos, não de arrecadação – pretende amenizar o ciclo mensal da revista, que dificulta a abordagem, por exemplo, das gravações de Sérgio Machado. Em 20 dias, um detalhe importante sobre a história perde impacto. Um desperdício ainda, diz, de informações de um grupo qualificado em apuração política. “O matriarcado”, ri Fernando: Malu Gaspar, Consuelo Dieguez, Julia Duailibi, Carol Pires. “Elas chegavam no meio da crise política e me diziam que não tinham o que fazer com uma informação. Agora temos a preocupação oposta. A Malu ficou sobrecarregada de escrever a capa do Delcídio e postar no blog. Mas ela cumpriu”. O conteúdo exclusivo para a web não significa, no entanto, um equilíbrio entre as frentes de publicação. “No dia que isso inverter, eu vou poder dizer que nos rendemos à internet. Mas o orçamento, os recursos e a ênfase continuam na revista física”, garante Moreira Salles. Fernando reforça que não enxerga possibilidade de mudança. “Por conhecer a natureza de piauí e por conhecer o João”, ele ri.

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