Crescendo com O Dia
- Ana Luísa Pereira, Felipe Ariani e Raísa Lassance
- 25 de jun. de 2016
- 10 min de leitura

Numa ampla e moderna casa em Botafogo, que hospeda a agência InPress Porter Novelli, nossa equipe foi recebida pelo diretor executivo Alexandre Freeland. Enquanto subíamos as escadas até o terceiro andar, ele ia apresentando a agência e explicando as frentes de trabalho da empresa. Chegando à sala de reuniões, o assunto não era o presente, mas o passado. Freeland é um personagem central para contar a história do jornal O Dia, porque lá passou 17 anos da sua vida profissional.
Desde a entrada como estagiário, em 1995, aos 23 anos, Freeland passou por todas as posições da cadeia produtiva de um jornal, até chegar ao topo, como diretor de redação em 2008, função que cumpriu até 2012. Desde então Freeland está à frente da agência que foi eleita a melhor em relações públicas pelo estudo prScope (2015) do Grupo Consultores.
Mesmo vivendo uma nova fase, o jornalista ressalta que O Dia foi essencial para formar o profissional que é hoje. Nesta entrevista, ele conta sua trajetória no jornal, do início ao fim.
"Conhecer O Dia e entender o
jornalismo popular foi quase uma
revolução pessoal. Eu me apaixonei
completamente e me despi de alguns preconceitos"
Como foi o seu início como estagiário no Dia?
Eu estudava na UFRJ, na Escola de Comunicação, e tinha trancado porque morei dois anos na Alemanha. Quando voltei, eu fazia mil coisas ao mesmo tempo. Eu participava do movimento estudantil, fazia parte da Enecos (Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social), fazia uns freelas, mas aí tem uma hora que você começa freneticamente a buscar estágio. Hoje em dia, eu não sei como eu fazia tanta coisa em 24 horas. Nessa época o Jornal do Brasil estava ativo ainda. Os jornais faziam um processo de seleção de estagiários bem forte, e O Dia era um dos mais concorridos. O processo era super bem organizado. Era uma espécie de recrutamento mesmo, de procurar talentos, e tinha uma coisa muito sagaz de procurar pessoas de diversos cantos da cidade, do Estado do Rio. Era bem plural, para pegar olhares, experiências e pessoas de bairros diferentes. Passei por esse processo de seleção, com muitas etapas - prova escrita, prova de redação, dinâmica de grupo, aquelas coisas todas. Fui selecionado e comecei em abril de 1995, com uma turma de uns dez colegas. Além do processo de seleção ser muito legal, havia uma estrutura para a execução do estágio que era muito boa também. A gente fazia o rodízio pelas editorias, conhecia de fato o modo de operar de cada uma delas. Ficávamos normalmente uns dois meses em uma e aí trocava. Uma hora estava no Esporte, outra no caderno de automóveis, outra no Dia D, outra no caderno de interior, então era uma experiência muito rica, que mostrava as entranhas de cada editoria. Cada uma tinha um modo diferente de fazer, foi super valioso.
Qual foi a editoria que você mais gostou?
Naquela época, eu queria ser repórter de política do Jornal do Brasil. Porque, para a minha geração, o Jornal do Brasil era referência e a editoria de Política era muito importante. Então, para mim, conhecer O Dia e entender o jornalismo popular foi quase uma revolução pessoal. Eu me apaixonei completamente, e comecei a me despir de alguns preconceitos e entender a importância disso. Foi fantástico. Comecei pelo caderno de automóveis. Foi algo que eu não esperava, e em que eu não tinha nem interesse. Foi bastante interessante porque foi uma lição de humildade, logo na largada. O caderno de automóveis saía nas quintas-feiras, um dia muito forte de vendas, exatamente por causa do caderno de automóveis. Mas não vendia por causa das matérias, e sim porque tinha as melhores ofertas para comprar e vender carros. Era preciso entender que estava num modo de produção para gerar algo de interesse do leitor, mas o leitor não quer exatamente o que se tem a oferecer. Ele quer muito mais. Ele quer oferta também, um anúncio bacana, ele quer diversão, ele quer fazer render o dinheiro dele, ele quer uma boa dica de saúde. E aí a gente vem com a nossa formação de jornalismo investigativo, de denúncia, que é lindo e é o que nos move na maior parte das vezes, mas o desejo de quem está do outro lado é muito mais complexo. Assim, começar pelo caderno de automóveis me fez ter essa lição de humildade e ver como um jornal tem que ser plural e atender a diversos interesses. O bacana do jornalismo e ter esse mix, esse equilíbrio nessa oferta de notícia, de escândalo, de futebol, de televisão, e no jornal popular essa oferta fica mais exacerbada. Tem menos pudores de oferecer o que as pessoas querem. Isso é um aprendizado bem interessante.
Qual era a sua rotina como estagiário? Quais eram os desafios?
Depende muito da editoria. Na primeira semana eu já viajei, porque o caderno de automóveis tinha uma página de viagem. Fui fazer uma matéria viajando com um fotógrafo super premiado, talentosíssimo, que é o Severino Silva. Naquela época havia muito menos amarras de escalas, de horários, de tudo. Não estou dizendo que era melhor, necessariamente, mas era a realidade daqueles tempos: a gente com a faca nos dentes querendo fazer o melhor possível, era paixão total. A gente fazia tudo: sugestão de pauta, apuração, redação da matéria e, dependendo da editoria, a gente tinha a oportunidade de estar perto da edição. Palpitando mesmo, colado no editor, sugerindo foto, título. Isso no Dia era especialmente legal: essa proximidade e essa informalidade que permitia ter acesso a quem mandava de fato, isso era um mega aprendizado. Aí tem um traço da minha própria personalidade que é ser intrometido, pretensioso. Vai se colocando, e se dá um tiro certo ou dois, se ocupa o espaço corretamente, vai tendo oportunidade. Isso aconteceu muito comigo, porque eu queria muito fazer. Era muito apaixonante aquele momento que a gente vivia ali: a gente era feliz e sabia (risos).
O que mudou quando foi efetivado como repórter do Dia?
O que mudou foi que eu passei a acordar mais cedo (risos). A vaga que surgiu na ocasião era no esporte, no caderno Ataque, para ser setorista de turfe, corrida de cavalo. E os cavalos acordam cedo (risos). Eu não entrevistava os cavalos, mas entrevistava os jóqueis, e eles acordam cedo. Só que os páreos eram de sexta até segunda-feira. Eu ficava acompanhando os resultados até tarde na redação e tinha treino no dia seguinte. Mas isso não durou muito tempo. Eu não tinha me formado ainda, mas fui contratado em 1996 para cobrir Política. Era a praia que eu gostava, mas era uma editoria que só surgia no período de eleição. Passei dos cavalos aos políticos rapidamente. Há quem diga que eu estava melhor com os cavalos (risos).
Por que não havia editoria de Política fora do período de eleições?
Na verdade a cobertura de política no dia a dia estava em País e Cidade. Tinha cobertura da Assembleia Legislativa, Câmara dos Vereadores, Prefeitura e Governo do Estado. Assim, o jornal estava muito presente na vida política e dos poderes da cidade e do estado. Mas a Política se constituía numa outra editoria na campanha [eleitoral], tinha que cobrir rotina de candidato, era uma outra agenda.
"Essa estratégia de pulverizar, de abrir
outras frentes, acabou enfraquecendo mais do que concentrar e ativar aquela que era a
marca mais poderosa, tradicional"
E depois da reportagem, como foi a sua trajetória?
Eu não fiquei muito tempo na reportagem, eu virei subeditor logo cedo. Como eu era subeditor de Cidade, eu fechava um pouco de Política também. Aí virei editor de Cidade e Polícia. Depois virei editor de produção, que é o cara que abre a redação e faz a primeira reunião, de manhã. Isso foi na gestão da Ruth de Aquino, que hoje é colunista da Época. Ela foi uma diretora muito importante, que modernizou muita coisa e, naquele momento, ela me promoveu para ser a pessoa que ia fazer a conexão do jornal impresso com o online. Isso foi na virada dos anos 2000. Como diretor de produção eu abria o jornal, sabia muito sobre o produto que a gente ia embalar no fim do dia, e começava a fazer a conexão com outras mídias. Nessa época a gente tinha uma parceria forte com a Band, eu fazia um link ao vivo para o jornal local de segunda a sexta-feira. Eles levantavam um assunto e a gente fazia um debate. Foi uma experiência muito interessante, porque era uma parceira entre veículos de fora do eixo Globo. Depois eu virei diretor executivo, em seguida editor chefe do jornal e, por fim, cheguei a diretor de redação.
Como era a rotina de diretor de redação?
As coisas mudaram porque começaram a surgir mais títulos. Intensificou-se a produção eletrônica, a gente tinha um site mais robusto e tinha o Meia Hora. Com um número maior de veículos, era um bocado estafante. O diretor de redação tem que ter a noção do todo, decidir quais são os investimentos maiores. Talvez, o desafio profissional que passa a existir na mudança de função de editor-chefe para diretor de redação seja a sua proximidade maior com a condução do negócio. O seu tempo não é mais exclusivamente dedicado ao editorial, você passa a ficar mais perto das estratégias de circulação, de marketing, a sua função fica mais diversificada. Só que tem que continuar dando conta do editorial, que é super desafiador, todos os dias uma coisa diferente, tem que ter um pensamento de longo prazo.
Como foi administrar a redação em meio ao caso dos repórteres que foram feitos reféns por milicianos na favela do Batam?
Foi um momento de muita tensão, a redação muito abalada com o episódio... Em paralelo, tinha uma dupla de repórteres - João Antônio Barros (leia entrevista em Essos do ofício) e Thiago Prado - que também investigavam, e conseguiram quebrar com boa parte das milícias do Rio. Eles mostravam como eles ocultavam bens, como era o processo de enriquecimento. Eles não recuaram apesar desse momento muito difícil, de ver os colegas numa situação dessas. Tanto que boa parte do que essa dupla produziu serviu de base para a CPI das milícias depois. A Justiça, o Ministério Público e a Polícia agiram com rapidez, tanto que os policiais foram condenados num prazo relativamente curto diante do que a gente costuma observar em segurança pública. A Polícia fez um trabalho muito relevante para encontrar os culpados, garantir que fossem presos e condenados.
O que mudou na administração do jornal quando a empresa portuguesa Ejesa assumiu o controle do Dia?
Era muita coisa diferente. O Dia da época anterior, com o qual eu convivi, era controlado primeiro por Ary de Carvalho (leia O 'coadjuvante' e 65 anos de história), depois pelas filhas, às vezes se entendendo bem, às vezes não. Era uma empresa familiar, com o que tem de melhor e o que tem de não tão bom assim. Mas havia uma grande proximidade e presença delas. Acontece que o ambiente de competição no Rio de Janeiro sempre foi muito agressivo. Estar no mesmo espaço que as Organizações Globo, não é pouca coisa. Com o lançamento do Extra, as condições de mercado para O Dia pioraram muito e foram se deteriorando ao longo dos anos. Essa era uma competição bem complicada de ser travada. Ficou evidente em algum momento que as irmãs não se entendiam mais na condução dos negócios, e isso impactava o jornal numa visão de longo prazo. Aí veio a mudança com a entrada em cena da Ejesa. Eles já tinham feito aquele movimento de lançar o Brasil Econômico, inicialmente baseado em São Paulo. Eles entendiam que haveria um espaço com a saída da Gazeta Mercantil, que deixou de circular. Então eles já estavam vindo para competir com o Valor, que é simplesmente a união da Folha com a Infoglobo. Não é pouca coisa, né? Havia da parte da redação uma grande expectativa, um grande entusiasmo inicial: “Caramba, os caras estão vindo com disposição, vão investir, trazer recursos, são um grupo forte”. Tinha também uma apreensão, porque quem chega pode mudar a equipe inteira, pode mudar o comando da redação, pode mudar tudo. Mas não foi o que aconteceu, eles mantiveram as pessoas e ficou essa expectativa muito forte de que viessem os investimentos, uma estratégia de marketing mais agressiva, que buscasse mais espaço no mercado, mais investimentos na publicidade da própria marca do jornal. Mas eles buscaram outras estratégias e eu acho que O Dia acabou sofrendo mais nesse processo de mudança, porque ele acabou alicerçando outras iniciativas editoriais e de outra ordem. Por exemplo, a gente estava dentro do portal Terra e aí foi pro portal iG, que estava dentro da Ongoing. Essa ida para o iG não foi exatamente vantajosa para O Dia em termos de visibilidade, de ganho comercial. Então eu acho que eles acabaram não conseguindo se concentrar no produto que tinham diante deles. Essa estratégia de pulverizar, de abrir outras frentes, acabou enfraquecendo mais do que concentrar e ativar aquela que era a marca mais poderosa, tradicional, reconhecida e com muito potencial de crescimento no Rio de Janeiro e no Brasil, até. Então, acabou que o modelo de gestão deles era muito diferente, tinha muita interface com o modelo de São Paulo, com outras frentes, e acho que isso foi preponderante para que a coisa caminhasse de um jeito que não foi bem-sucedido.
"Tinha a sensação que era um casamento e
eu teria que saber a hora certa de terminar.
tinha que sair de forma respeitosa"
Por que você resolveu deixar a diretoria de redação do Dia?
Foi um processo de amadurecimento da minha interpretação de que a condução do negócio não era a que levaria ao crescimento do Dia nem do Meia Hora, ao contrário, a visão do negócio não era a que eu acreditava, e foi por isso que eu saí. Eu via no dia a dia um enfraquecimento das condições pra você ter um produto editorial do qual você possa se orgulhar, no dia seguinte, e eu era o responsável pelo que era publicado, repostado, na condição de diretor. Apesar de todo o tempo que eu estava lá, eu tinha a sensação que era um casamento ou relação que eu ia ter que saber a hora certa de acabar. Você tem que sair de forma respeitosa, até porque as pessoas que iam ficar eram de muito valor, de muita competência profissional, de lealdade ao jornal. Eu tinha uma gratidão enorme por toda a minha trajetória no jornal e tinha a certeza de que eu queria manter essa relação boa com a minha própria história ali dentro.
A transição para a Ejesa tirou muito a autonomia da redação na condução do seu orçamento. Quem você contrata, quem você demite, quanto você vai investir numa reportagem especial, tudo isso é o diretor de redação quem decide. Se é pra ter outro cara decidindo, pra mim ele já está tomando a decisão editorial, e a decisão editorial quem toma é o diretor. E aí não dá, não posso abrir mão disso; se a regra é diferente dessa, “tô” fora.
Isso não é um modelo de sucesso. Isso é um modelo meramente de contenção e eu sequer sei se esse corte de gastos é o mais apropriado. Por que cortar ali e não cortar aqui? Por que que reduz o número de carros à disposição da reportagem e não reduz uma outra despesa? Por que tem que dar menos trocas de atualização do jornal e não evita esse desperdício aqui? Então na mudança de editor-chefe pra editor de redação tem toda essa dinâmica do dia a dia do jornal, que é bastante complexa. Vai além da folha salarial. Se faz um jornal com “x” páginas e fala, poxa a edição de amanhã é muito importante, preciso dar mais quatro páginas. É uma decisão editorial que tem um impacto no modelo de negócio, você tem que saber quando aplicar isso. As pessoas da redação precisam ter autonomia, se for só uma lógica econômica, vai chegar ao ponto de dizer: “Vamos fazer o seguinte? Tá muito caro o jornal, é melhor a gente não circular amanhã, não” (risos).
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